DANÇA E SAGRADO

“Dança e espiritualidade” é um dos programas permanente do Conselho Internacional de Dança Unesco com o qual intenciono contribuir. 

 

REENCANTAR O MUNDO

Dançamos, cantamos e criamos ainda movidas por uma força que vem desde o começo dos tempos. Cada momento é uma porta para nos abrir ao tempo mítico, in illo tempore, o tempo em que as formas, regras quotidianas e condições se dissolvem para podermos recriar e renascer agora.
Como tão bem expressa David Abram no seu livro a Magia do Sensível, nos povos de cultura oral e pré alfabética, tudo o que era relevante para a vida humana era cíclico, e por isso a sabedoria contida na magia da Vida era também vista como cíclica e infinita. Com esta ciclicidade existia ainda o imenso potencial de qualquer elemento ou aspeto sábio desvanecer-se ou renascer com mais força com a ajuda ou intenção humana.
Assim o ser humano com as suas histórias, linguagens criativas – fala, dança, canto – tinha esta possibilidade de refazer o mundo dentro duma cosmovisão alinhada ao relembrar o poder específico de certa paisagem, a verdade de certa história e o encantamento de certo gesto.
Para viverem, as coisas criadas precisam depois de ser relembradas e assim despertas para o seu sentido maior, e os seres humanos têm este lugar e responsabilidade como cuidadores da criação – mais do que criadores em si.
Com a vinda das culturas alfabéticas, começa o afastamento gradual desta visão cíclica, e a atenção vira-se obsessivamente para momentos disruptivos e de morte – como catástrofes, êxodos, guerras – tal como para a captação destes momentos através da arte e da escrita que os tornaria intemporais. Repetitivos mas não cíclicos, por que não organizados dentro de uma possível harmonia.
Mas a cultura primordial mágica e sábia continuou. Apesar do afastamento e desvanecimento que porventura nos tenha trazido até aqui – até este momento da história linear, em que aparentemente as coisas seguem um fio único e inalterável de acontecimentos disruptivos – o movimento circular e primordial da vida continuou e continua a existir e a chamar certos elementos da Vida para o seu Relembrar e o Recordar. Não de forma mimética, repetitiva, mas de forma a trazerem em si e através de si, a potencia mágica e sábia de um gesto, de uma canção, ou de uma paisagem.
A Arte, e mais concretamente, a Dança que faz este papel é chamada de Ritualista. Mas porquê? De onde vem a intimidade do Ritual com a Dança?

Vera Eva Ham, excerto do Manual Formação Essencial Matridança

 

 

Incorporação, o Coração que me faz querer dançar

Ao longo do meu percurso na dança, fui sentindo uma aproximação ao Coração daquilo que me faz querer dançar. Em 2011 já tinha uma sensação deste sentido, quando escrevi a Carta sobre a Presença (abaixo), na qual refletia que a Presença do performer e do público eram catalisadores de um estado de consciência particular, estado esse que sempre foi central para mim. Mas entretanto, ao iniciar a pesquisa das personagens femininas bíblicas, enquanto fui passando de Eva a Salomé, e de Salomé a Maria Madalena, outros aspetos se clarificaram.  Um destes aspetos é aquilo que chamo de Incorporação, e que descrevo como um abrir espaço-tempo dentro do corpo, de maneira a que possam entrar outros seres – pedras, animais, estrelas, forças da natureza –  trazendo outro movimento, outra presença, para além e através desse próprio corpo . Este processo é bastante desenvolvido na dança butoh, mas não é conseguido puramente com nenhuma técnica, nem somente com a imitação ou intenção deliberada. É o que muitas/os bailarinas/os já chamaram de ser dançada/o, ao invés de dançar, e no Butoh assim como em muitas outras Danças Sagradas, esta perceção é levada a lugares desconhecidos e selvagens. e a dançante e as suas memórias, os seus desejos, a sua história, e o seu corpo, abrem-se plenamente a outras memórias, desejos, histórias, e corpos. Poderia este ser um pilar da Dança Sagrada e  do seu êxtase, que é este ficar fora de mim, para que algo maior fique dentro: sair do caminho como criadora, pensadora, atuante e abrir a minha presença de modo a que esta seja cocriadora, co pensadora, co atuante?

Sim, este seria um misterioso e perigoso sentido para a dança, mas daí poderia nascer uma profunda fé- também ela irracional e misteriosa –  que com este sentido a dança nasce infinita e inteira.

Vera Eva Ham, Equinócio de Outono de 2015.

Sobre a presença e a entrega

Quando encontro o fio condutor do meu percurso na dança, chego sempre aqui: entrega, o mistério da presença, momento onde tudo o que pode ser nomeado desaparece, e apenas estamos NÓS/ AQUI/ AGORA.  Encontro sempre este fascínio inabalável pela transformação da fragilidade de quem se entrega numa dança/performance, numa estranha força. In illo tempore, o tempo mítico e sagrado dos rituais arcaicos, onde tudo volta ao início, onde as formas estão fluidas,  e por isso podem ser reinventadas.

O ritual é a origem da performance artística, e esta entrega e presença, o fio que ainda nos liga a essa origem. A presença e a entrega, não acontecem apenas numa atuação artística. Elas espreitam diariamente ao nosso ombro, em situações prosaicas do chamado quotidiano. Mas devido á atual condição humana, e á crença obsessiva no tempo profano, linear – passado, presente, futuro – acabamos por esquecer-nos delas. E é aqui que a performance aparece, por que nos obriga a observar a presença, por que é a performance a própria ferramenta da entrega. Ela é partilhada pelos que nos veem, e estes responsabilizam-nos e muitas vezes se desresponsabilizam. Mas entretanto, a audiência é também levada a estar presente (e aqui, voltamos a estar ligados ao ritual arcaico, ás performances das mulheres e homens medicina). Performer e público funcionam como um catalisador da consciência, e por isso a arte nunca perderá esta potência maior,  mesmo  desvalorizada, ou dessacralizada: não por que a dançante seja uma entidade divina, ou genial, a qual os outros assistem passivamente, mas por que juntos – performer e observador – simbolizam e sublinham o processo que cada um possui individualmente: o que observa, e a matéria observada e a sua união. E juntos, podemos descobrir que na presença e na entrega, somos o mesmo e apenas UM.


Vera Eva Ham, Janeiro de 2011